O mal-estar na contemporaneidade.

Se é verdade que “toda obra de arte é filha de seu tempo e, muito frequentemente, a mãe dos nossos sentimentos” (Kandinsky, 1910), o que podemos dizer de nosso modo atual de existir, nossos medos e angústias, nossos vínculos e relações, nosso adoecer cotidiano, através de uma leitura da arte contemporânea?

Desde a década de 1960, violência, morte e um desejo inequívoco de transgressão aparecem como preocupação recorrente no programa da arte. Artistas se envolvem em espetáculos de automutilação e de provocação diante do público, muitas vezes perplexo pelo realismo das experiências. Em 1974, por exemplo, a artista sérvia-americana Marina Abramović apresentou, na galeria Studio Morra em Nápoles, a performance Rhythm 0, na qual se manteve, durante 6 horas, de pé no centro da galeria, imóvel e passiva diante do público. Ao seu lado, uma mesa expunha 76 objetos diversos, entre os quais se viam uma rosa, uma pena, uvas, um copo com água, perfume, mas também uma faca, uma lâmina de barbear, uma tesoura e até uma pistola carregada com uma bala. Objetos que serviriam para criar sentimentos de prazer e dor. Havia também um texto escrito e assinado pela artista, no qual ela se oferecia como um objeto: “vocês podem usar tudo o que está sobre a mesa no meu corpo. Eu assumo toda a responsabilidade, mesmo se me matarem”.

No início, pouca coisa aconteceu. O público reagia timidamente. Ofereceram água para que Marina bebesse. Ofereceram-lhe a rosa. Acariciaram-na delicadamente. Beijaram-na. Brincaram com o corpo da artista de maneira lúdica. Mas logo as reações se tornaram mais violentas. O público passou a insultar a artista. Um homem cortou sua roupa com a tesoura e a despiu. Alguém a feriu com os espinhos da rosa. Outro cortou seu pescoço com a lâmina de barbear e bebeu o seu sangue. Alguém a molestou sexualmente. Um espectador segurou a pistola carregada contra a cabeça de Marina e foi contido por outro espectador. Quando as seis horas terminaram e os organizadores anunciaram que a performance havia chegado ao fim, Marina pôs-se a andar em direção ao público. Segundo seu relato, neste momento em que ela deixou de ser um objeto inerte e reassumiu a pele de um ser humano, as pessoas recuaram, desviaram o olhar, não puderam mais sustentar o encontro com este outro que fora até então o objeto passivo para a satisfação imediata de seu sadismo. Mas o que eles realmente evitavam encarar? A artista ou a si mesmos, a sua própria violência? 

Mais ou menos radicais, estas performances efêmeras modificaram profundamente a relação do artista com o público. Suporte ou material, é quase sempre o corpo do artista que é colocado à prova.  Podemos dizer que masoquismo e exibicionismo, assim como seus pares, o sadismo e o voyeurismo, aparecem no centro destas produções, talvez como tradução de um sentimento que assombra o homem. Entramos, inevitavelmente, no reino das pulsões. Poderíamos ainda dizer, das pulsões não sublimadas. Lembramos que, em Freud, a sublimação, definida como um deslocamento da energia libidinal para fins socialmente aceitáveis, quer dizer, fins não sexuais, aparece como um dos destinos possíveis das pulsões. Segundo a concepção freudiana, a criação artística e o trabalho intelectual são modelos de sublimação, fenômeno que define o processo de construção da civilização.  

 A arte contemporânea parece, entretanto, contrariar este princípio refletindo, de um lado, certo fracasso da sublimação e, de outro, um fenômeno de transbordamento pulsional que se observa em determinados comportamentos e laços estabelecidos no âmbito da família e no âmbito social. Corpos martirizados e violentados, rostos desfigurados, materiais perecíveis, matéria orgânica cuja degradação é inevitável e mesmo cadáveres ou esqueletos constituem hoje obras de arte. Além de um recurso artístico ou um princípio ideológico, este encontro com a pulsão de morte aponta para uma visão de mundo despida da ilusão de harmonia, de limpeza, de progresso e de ordem, enfim, dos valores utópicos vinculados à modernidade.    

A arte se torna o espelho de uma civilização em ruínas. O desespero, a ansiedade, a angústia, o sentimento de insegurança, as adições (em todas as suas formas: droga, internet, consumo, medicamentos… ), a banalização da violência e das relações humanas, as guerras, as desigualdades, as injustiças, a segregação, o racismo e a intolerância são sintomas do fracasso da civilização. Um fracasso que reflete um desregramento dos laços sociais. A relação do sujeito com o outro mostra, na arte e fora dela, a sua face destruidora. O outro passa a encarnar o medo, a paranoia, a competição e o ódio. Parece que todos os limites impostos ao homem pelo bem da civilização são ultrapassados em nome da liberdade individual.

Atualmente, a desintegração dos laços sociais é um tema frequentemente debatido nos círculos da sociologia, da psicologia e da política, e isto em nível internacional. Um dos problemas apontados é a perda das referências de solidariedade em oposição a um individualismo crescente. A indiferença e a falta de empatia são apontadas como sintomas decorrentes desta desintegração, com um consequente aumento das delinquências e de atos antissociais. E na esfera da saúde, analistas e psiquiatras se confrontam com transtornos polimórficos, como os alimentares, as dependências, as compulsões, as delinquências de todo tipo, as hiperatividades e as bipolaridades tão em voga.

Em O mal estar na cultura de 1930, Freud parecia antecipar esta paisagem que nós reconhecemos hoje nas sociedades contemporâneas. Segundo ele, a questão decisiva para o destino da espécie humana é saber se e em que medida o desenvolvimento da cultura poderá dominar as perturbações impostas à vida em comunidade pelas pulsões agressivas e de auto aniquilamento. Os homens se tornaram mestres na dominação das forças da natureza. O que os impedirá de exterminar uns aos outros até o último ser humano?

Freud e a estética da estranheza.

Ainda que a relação da psicanálise com a arte tenha sido amplamente discutida por psicanalistas, artistas e críticos, não se pode dizer que o assunto esteja esgotado. O problema da estética, por exemplo, permanece polêmico. Teria a psicanálise legitimidade para interrogar a estética? É possível pensarmos uma estética de inspiração psicanalítica? Do mesmo modo, as possíveis intersecções da obra freudiana com a arte contemporânea são vistas com desconfiança, quando não são negligenciadas. Boa parte dos autores que avançam neste terreno de pesquisa rejeitam a ideia de um diálogo entre Freud e a arte contemporânea. É exatamente esta a discussão que eu proponho neste artigo: primeiramente, um olhar sobre a estética a partir de uma perspectiva freudiana e, num segundo momento, uma análise crítica da relação entre a teoria do psicanalista e a criação artística contemporânea.

Antes de mais nada, a pergunta que deve ser feita é: existe uma estética freudiana? A questão se justifica pois Freud mesmo põe em dúvida o alcance de suas intervenções neste terreno particular. Ele declara em diversas ocasiões que os interesses da psicanálise pela arte são limitados e que ele nunca pretendeu elaborar uma teoria psicanalítica da arte.  Além disso, há uma questão metodológica que não deve ser menosprezada. A aplicação da teoria psicanalítica a um domínio diferente da clínica é sempre arriscado. O valor epistêmico destas iniciativas, agrupadas sob a etiqueta de psicanálise aplicada, é frequentemente questionado. Não sem razão. A noção de aplicação supõe que um corpo teórico mais ou menos formalizado possa ser aplicado sem modificações a um domíno de interpretação diferente daquele sobre o qual ele foi construído. Se do ponto de vista da epistemologia esta ideia é mal recebida, ela não é menos controvera aos olhos do psicanalista. A rigor, a psicanálise só se aplica como tratamento a um sujeito que fala e que escuta sua própria fala. Por isso, pode-se sempre desconfiar de trabalhos do gênero psicobiográfico em que o artista ou o personagem são postos no divã a sua revelia. Este tipo de análise raramente escapa a uma interpretação reducionista. Freud reconhecia este risco da psicanálise aplicada. Ele procurou atravessar com prudência a barreira que separa a clínica da cultura. Segundo ele, tudo o que a psicanálise pode oferecer são esclarecimentos quanto à criação artística, assim como a qualquer produção humana, sem contudo se fixar em eventuais tendências patológicas dos escritores ou dos artistas.

Entretanto, não se pode negar que o alcance do método analítico supera os limites da clínica. A interpretação da cultura através de uma perspectiva psicanalítica é um campo sempre rico de possibilidades. Freud nutria esta perspectiva com entusiasmo e satisfação. Não são raras as referências feitas à arte. Mesmo antes dos textos inaugurais da psicanálise, Freud se valia do discurso artístico para sustentar seus argumentos. E entre as diferentes formas de expressão, a tragédia e a literatura tiveram lugar privilegiado no pensamento freudiano e uma importância indicutível para o desenvolvimento da teoria psicanalítica. As cenas de Édipo e de Hamlet se transformaram, sob a pluma de Freud, no paradigma do destino da humanidade. Édipo Rei simboliza, na leitura freudiana, o desvelamento do enigma do inconsciente, enquanto Hamlet envia o leitor à ideia de uma culpabilidade universal. Tragédia e literatura participam assim da edificação do mito freudiano que confere à civilização suas bases edipianas. Já os Irmãos Karamazov de Fédor Dostoïevski representa, segundo Freud, a pulsão parricida nua, sem a dissimulação de Édipo ou a dúvida de Hamlet. Assim, o drama edipiano não é a ilustração de uma teoria, mas o substrato onde o incesto e sua interdição se fazem visíveis. Como disse Jean-François Lyotard, a obra de Sófocles e a de Shakespeare dão à clínica da neurose sua justificativa universal. Assim, se é possível dizer que a psicanálise se aplica à arte, pode-se afirmar que a arte se aplica igualmente à psicanálise.

Voltemos à pergunta inicial: a teoria freudiana contribui ou não para o campo da estética ? A este respeito, não se pode negar uma certa contadição em Freud. Ao mesmo tempo em que se dedica com entusiasmo ao assunto, ele confessa sua incompetência no que se refere aos problemas da estética. Na verdade, ele exclui este ramo da filosofia da esfera de investigação da psicanálise. Pelo menos é o que ele declara. Freud reitera em várias ocasiões que a avaliação estética das obras de arte e do trabalho técnico do artista são atribuições dos estetas . Do mesmo modo, a explicação do dom do artista e dos mistérios da criação seriam inacessíveis à psicanálise.

Nas primeiras linhas do artigo de 1919, O Estranho, Freud declara :

“Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultâneos, fornecem habitualmente o material para o estudo da estética”. (Freud, 1919, p.3).

Porém, é neste mesmo artigo que o psicanalista aborda explicitamente o problema da estética:

“Mas acontece ocasionalmente que ele tem de interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética. O tema do‘estranho’é um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador — com o que provoca medo e horror… Nada em absoluto encontra-se a respeito deste assunto em extensos tratados de estética, que em geral preferem preocupar-se com o que é belo, atraente e sublime — isto é, com sentimentos de natureza positiva — e com as circunstâncias e os objetivos que os trazem à tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflição”. (Idem).

O Estranho traz uma contribuição indispensável à teoria estética de inspiração psicanalítica. Neste texto, Freud discute um gênero específico de representação capaz de despertar no leitor um sentimento particular de angústia definido em alemão pela palavra  Unheimliche. As traduções não fazem justiça à riqueza semântica do termo germânico. Em português, traduz-se por estranho. Em espanhol, por sinistro. Em francês, por inquiétante étrangeté. Em inglês, por uncanny. Por isso, penso que uma breve análise de suas nuances significativas é bem vinda, pois a questão específica de tal artigo é determinada por um significante germanófono. Em toda a primeira parte do texto, Freud se preocupa com a etimologia e com a definição das diferentes aplicações da palavra.  Unheimlich é o contrário de heimlich, que significa familiar. O leitor é assim tentado a concluir precipitadamente que uma coisa é assustadora porque é desconhecida. Entretanto, a investigação das origens e da evolução do termo mostra que heimlich pertence a dois grupos distintos mas não contraditórios de representações: o do familiar, confortável e o do secreto, dissimulado. O que o estudo minucioso de Freud indica é que é estranho (unheimlich) “tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”. (Freud, 1919, p. 8).  Este sentimento particular de estranheza define então uma variedade do terror ligada à presença dissimulada de um próximo distante,  desde muito tempo conhecido.

Freud interroga este efeito suscitado pela literatura através da análise de duas obras do escritor alemão E.T.A. Hoffmann, um mestre da narrativa fantástica: O Homem de Areia  e O Elixir do Diabo. O primeiro é um conto que traz a história da boneca Olímpia e do estudante Nataniel que, apesar de sua felicidade aparente, não consegue apagar as lembranças da morte apavorante e misteriosa de seu pai. Olímpia se assemelha em todos os aspectos a um ser humano, o que provoca a incerteza desconfortável em relação a sua natureza. Trata-se de uma pessoa ou de um autômato ? Este recurso literário, muito utilizado por Hoffman, explica de certa forma a estranheza transmitida pelo texto. Na análise freudiana, o tema do duplo ganha forma através da boneca “viva” e da repetição sistemática de personagens. O duplo representa originalmente uma aparente segurança contra o desaparecimento do ego, um desmentido enérgico da morte. O fenômeno brota do solo amistoso do amor próprio ilimitado, do narcisismo que domina a mente infantil. Entretanto, desenvolve-se progressivamente no âmbito psíquico uma instância reguladora e crítica de auto-observação que se opõe obstinadamente ao ego. O duplo inverterá assim seu aspecto. De garantia de vida, ele se transforma em um estranho anunciador da morte.

“ Provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. Essa invenção do duplicar como defesa contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que gosta de representar a castração pela duplicação ou multiplicação de um símbolo genital. O mesmo desejo levou os antigos egípcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto em materiais duradouros. Tais idéias, no entanto, brotaram do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”. (Freud, p. 16).

Este tema é explorado de forma ainda mais pronunciada na novela O Elixir do Diabo, onde uma série de alegorias criadas por Hoffmann trazem repetidamente a motivação do duplo. Temos personagens que se assemelham ou que se identificam uns aos outros, confundindo seu próprio self; uma narrativa que salta de um personagem para o outro, que compartilha suas experiências numa espécie de telepatia; a repetição das mesmas situações, crimes e nomes, através das diversas gerações que se sucedem. Estes recursos acentuam o efeito de estranheza despertado pelo texto, ainda que não se possa determinar exatamente como isto ocorre. Mas esta aparência superficial do fenômeno do duplo seria insuficiente como justificativa de tal efeito se o problema não fosse analisado em outros termos, isto é, sob o ponto de vista do funcionamento psíquico. Freud fala aqui pela primeira vez em compulsão à repetição, força primitiva submetida à pulsão de morte. Esta compulsão, poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, traz à superfície um aspecto demoníaco do inconciente há muito “esquecido” e que é percebido como estranho pela consciência. Em 1920, Freud publica Além do princípio do prazer onde estas questões são retomadas de forma mais profunda, tendo como resultado a elaboração do conceito de pulsão de morte.

Freud rejeita, entretanto, a motivação do duplo como justificativa única do efeito de estranheza provocado pela literatura. Segundo ele, o tema principal do conto O Homem de Areia é outro, algo que lhe dá o nome e que reaparece em todos os momentos críticos da narrativa. O “homem de areia” surge nas lembranças do jovem Nataniel como uma figura aterrorizante que joga um punhado de areia nos olhos das crianças que se recusam a dormir, de modo que estes saltam sangrando das órbitas. Esta anedota fantástica permanece associada na fantasia do estudante à morte dramática de seu pai amado. O escritor cria uma atmosfera de incerteza através da boneca Olímpia e da analogia entre os personagens do Homem de Areia, do advogado Copélio e do pai de Nataniel. Esta relação é repetida através dos personagens do professor Spalanzani e do oculista Coppola. Cria-se assim uma série de pais para representar a ambivalência afetiva da criança em relação às figuras parentais, isto é, ambivalência entre o amor pelo pai bom e protetor e o ódio pelo pai ameaçador e castrador. O efeito de estranheza suscitado pelo conto deriva assim da angústia infantil reprimida de castração. O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensina que a angústia em relação aos próprios olhos, o medo de ficar cego por exemplo, é muitas vezes um substituto do temor da castração. O auto cegamento de Édipo foi na verdade uma forma simbólica de castração, o único castigo adequado pelo seu crime de incesto.

Importante dizer que O Estranho não é simplesmente uma reflexão sobre estética. Ele anuncia a grande revisão teórica dos anos 1920 que desemboca em uma nova teoria das pulsões. Freud passa a reconsiderar nesta época os limites do princípio do prazer, tido até então como tendência dominante do psiquismo. Ele reconhece aqui a existência de um tipo de prazer, mais primitivo que o primeiro, submetido à compulsão de repetição. Sob este ponto de vista, pode-se dizer que o estranho faz ver a dimensão pulsional da experiência da arte. A estética que nasce desta revolução teórica representa então uma perspectiva da criação despida da ilusão do belo, da harmonia e do bom.

Podemos assim dizer que a estética freudiana não é uma doutrina do belo na arte, nem um tipo de julgamento de gosto. Freud se interessava menos pelo aspecto formal das obras de arte que pelo enigma que elas escondem. Esta tendência a negligenciar a técnica e a forma em favor do conteúdo é o ponto fraco que os detratores da estética psicanalítica não cessam de apontar. As contribuições freudianas neste terreno apontam para outra direção : Freud se preocupou em tornar inteligíveis os meios pelos quais o artista obtém os efeitos afetivos despertados pela sua criação.

O ponto de partida da análise freudiana é o afeto ou a emoção provocada pela obra de arte. Segundo o psicanalista, a arte promove de uma forma ou de outra um ganho de prazer, mesmo que a expressão artística envolvida seja de outra ordem, como a dor ou a repulsa. Em Além do princípio do prazer, analisando a compulsão à repetição, Freud descreve certos mecanismos psíquicos capazes de transformar situações originalmente dolorosas em fonte de prazer. Neste mesmo texto, ele sugere que estas situações poderiam ser objeto de interesse de uma estética de orientação econômica.

Entenda-se por econômica a hipótese que vem completar a metapsicologia de Freud, composta ainda pelas hipóteses dinâmica e tópica do funcionamento psíquico. A topologia freudiana propõe a diferenciação do aparelho psíquico em três instâncias : inconsciente, préconsciente e consciente, na primeira tópica, e id, ego e superego na segunda. O ponto de vista dinâmico considera que os fenômenos psíquicos são o resultado de um conflito de forças de origem pulsional. Finalmente, o aspecto econômico leva em conta o investimento de energia libidinal, sua mobilidade e variação de intensidade. A partir desta perspectiva, podemos afirmar que o prazer estético em Freud deve ser visto sob um ângulo metapsicológico, quer dizer, sob o ângulo da economia libidinal. Freud não leva em conta o prazer do belo, como as estéticas tradicionais de inspiração filosófica, mas a modulação das pulsões no sentido de uma transformação do desprazer em prazer. Desprazer que vem do eterno retorno do mesmo, o recalcado, que deveria permanecer oculto mas que insiste em traçar seu caminho em direção à consciência. É este o argumento introduzido em 1919, através de O Estranho, e desenvolvido em 1920, em Além do princípio do prazer. Mas já em 1905, em Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud indicava as bases desta estética de orientação econômica, ainda que esta obra não avance neste terreno. No texto em questão, são descritas as sofisticadas técnicas através das quais o aparelho psíquico deforma e mobiliza as pulsões de origem agressiva e sexual, que são originalmente fonte de desprazer, a fim de obter prazer como resultado final. Abre-se à criação artística uma dimensão afetiva que põe em relevo uma ambivalência pulsional, um conflito entre os impulsos de vida e de morte, entre o que é de Éros e o que é de Tânatos.

Para Freud, a obra de arte coloca em cena este conflito de forças. Ela dissimula e desvela, ao mesmo tempo, os desejos inconscientes. Sua matéria prima é pulsional e sua estrutura edipiana. O artista não esconde seus fantasmas. Ao contrário, ele os comunica. Mas os fantasmas não mostram sua verdadeira face. O inconsciente só se deixa ver através de vestígios. Por isso, se o artista pode comunicar seu desejo através da obra de arte, é porque ele é capaz de transformar seus afetos. O trabalho de arte é então o produto de uma deformação, assim como os sonhos, as lembranças encobridoras ou os sintomas, deformação sem a qual o prazer estético não seria possível. A beleza serve a esta deformação. Ela seduz. Desperta um prazer preliminar e superficial, como um efeito narcótico, amansando a censura. Mas este prazer preliminar não explica a fruição artítica. O verdadeiro prazer, segundo Freud, se explica por uma anulação temporária do recalque culminando com uma descarga energética. Esta é a essência da catarsis.

Freud toma emprestado de Aristóteles a noção de catarsis. Ela entra originalmente no contexto da cura analítica. O método catártico, definido em Estudos sobre a histeria, de 1895, é o processo pelo qual o paciente consegue aliviar seus sintomas revivendo o elemento traumático. O método psicanalítico propriamente dito passa pela catarsis antes de chegar a sua regra de ouro, a associação livre. Do contexto clínico, volta-se à estética. A arte teria também esta função de promover uma fruição através de uma transformação de emoções que são por si só dolorosas. Mas, para que a catarsis aconteça, é preciso que uma identificação se estabeleça entre espectador e artista. Só se obtém prazer com a arte se o espectador for também capaz de gozar de seus fantasmas, em toda segurança, pela via aberta pela obra de arte. Pois ele é também habitado pelo desejo incestuoso, pelo terror da castração e pela falta que constitui todo sujeito. A obra fala ao espectador porque ela fala ao seu enigma. A fruição artística supõe então a identificação do espectador ao fantasma do artista, o que nos permite supor a natureza narcísica da experiência estética.

Por narcisismo, entende-se a modalidade de investimento libidinal sobre o eu, que atravessa o desenvolvimento sexual normal de todo indivíduo. O eu é o reservatório primário de investimento amoroso. Se o mundo se torna atraente e prazeroso é porque uma identificação se opera posteriormente entre o eu e o outro. Toda experiência humana é permeada pelo narcisismo, sua relação à alteridade, suas identificações, a constituição de seus ideais e, é claro, sua relação à arte.

Esta questão da relação entre a experiência estética e o narcisismo servirá de ponto de partida para nossa discussão a respeito do diálogo de Freud com a arte contemporânea. Ela nos permite interrogar a aura do artista na contemporaneidade, assim como a recepção da obra de arte pelo espectador. Mas a possibilidade deste diálogo é rejeitada por vários autores. É o caso, por exemplo, do historiador de arte Gombrich. Segundo ele, em matéria de apreciação da arte, Freud estaria preso às tradições do século XIX, quando o conteúdo ou a narrativa contavam mais que a forma. Toda obra de arte estaria submetida, para Freud, aos critérios da representação mimética. Este ponto de vista teria impedido o psicanalista de apreciar a arte que lhe foi contemporânea, isto é, uma arte da apresentação, refratária à interpretação. Este argumento não é falso. Freud mesmo confessava uma intolerância em relação às expressões da arte moderna, contemporâneas do nascimento da psicanálise. Suas referências como amador da arte e como pesquisador pertencem de fato ao domínio da representação clássica. Entretanto, esta aparente contradição resulta de uma leitura superficial da obra freudiana. Antes de mais nada, não se pode falar em realidade psíquica como se fala em realidade material e objetiva. Esta diferença importa quando se trata do conceito de representação. A representação, em Freud, não é a reapresentação sensível de um referente. A noção freudiana de representante da representação leva em conta esta distância entre realidade material e realidade psíquica. Ela define uma função essencial dos processos psíquicos através da qual a pulsão se faz representar no inconsciente antes de ter acesso à consciência. A estética freudiana não diz respeito então à representação sensível da arte. Esta é objeto da consciência. O efeito afetivo diz respeito à mobilização das forças pulsionais que são, por definição, inconscientes. Por isso, ainda que a obra de arte se apresente em uma dimensão sensorial, temporal e espacial, a experiência estética pertence à dimensão psíquica. Além disso, Freud não presta homenagem à beleza. Ao contrário. Ele denuncia a fragilidade do prazer preliminar proporcionado pelo belo. Ele denuncia a ilusão narcísica perpetuada na arte mimética. Ilusão que traduz a crença da humanidade na perpetuação da vida. A psicanálise desmascara a ineficácia desta pretensão, pois a morte é o único e verdadeiro destino. Freud prepara assim o terreno para as discussões contemporâneas que denunciam igualmente o engôdo alienante da beleza.

Ao falar do narcisismo na arte, Freud desmistifica a figura do artista ao mesmo tempo em que revela seu caráter infantil. Segundo ele, o artista se recusa, como todo neurótico, a renunciar às satisfações pulsionais. Entretanto, sua vocação para a sublimação o diferencia do doente. O artista encontra um caminho de conciliação entre os dois princípios que regem o funcionamento psíquico, o princípio de prazer e o de realidade. Mas a sublimação é apenas um dos destinos possíveis das pulsões, assim como o recalque. Ela não é nada além de uma satisfação substitutiva da pulsão.  Do mesmo modo, a criação artística não é o produto de um dom miraculoso do criador. Freud pretendia desmascarar as ilusões que se escondem nesta concepção teológica, quase religiosa, da criação. Ilusões às quais o homem se prende por medo da morte. A ideia de que o artista é uma espécie de herói contribui para a falsa analogia entre a criação artística e a criação divina. Mas a arte não é divina, segundo o ponto de vista freudiano. E o artista nunca é o Pai de sua criação. Ele é superado por ela, preso em seu próprio jogo, gerado pela obra. É a obra que cria o artista.

Não se pode negar que este argumento de Freud a propósito do gênio se insere no pensamento moderno que questiona a aura do artista. Marcel Duchamp inaugura esta reflexão no contexto das vanguardas artísticas. De certa forma, ele também coloca em dúvida a concepção teológica da criação. O ready-made não questiona apenas a posição do objeto de arte, mas também a do artista. Ele elimina a competência técnica do artista. Ele apaga seus privilégios em relação ao homem comum. Ele aproxima a atividade artística da vida cotidiana. Não foi por acaso que Duchamp decidiu se eclipsar como criador ao apresentar A Fonte sob o pseudônimo de um R. Mutt qualquer. Estava em questão o apagamento da aura do artista. A escolha e o arranjo destes objetos cotidianos se traduzem na indicação de Freud segundo a qual o artista não cria, ele recompõe. A imaginação criativa não é capaz de inventar. Ela se contenta em reorganizar elementos já existentes.

O debate iniciado no início do século XX continua na atitude performática da arte dos anos 1960. Eu penso aqui no minimalismo e na arte conceitual. Permitam-me retomar a leitura de Jean-François Lyotard a este respeito. Segundo o filósofo, a cultura contemporânea é obsecada pela performance. Celebra-se a pura performatividade do Fiat Lux que faz do artista um criador no lugar de Deus. (Lyotard, 1993). Um criador pelo pensamento ou pela palavra. Uma ideologia teológica se perpetua nestes movimentos. O que nos leva de volta a Freud para quem esta concepção quase religiosa da criação vale como uma tentativa de denegação da morte. É possível identificar aqui a recusa infatil do artista, como em qualquer sujeito, a renunciar ao narcisismo que sobrevive de certa maneira como defesa do eu.

Ainda na perspectiva do narcisismo, como pensar a questão da experiência estética no contexto da arte contemporânea? Desde Duchamp, a indiferença estética está no centro das discussões em torno da criação artística. Esta suposta indiferença não estaria de acordo com o fracasso das identificações narcísicas? É possível identificar nas produções contemporâneas qualquer coisa como uma sedução ou um efeito catártico? Como pode o espectador obter prazer com um tipo de arte onde ele não se reconhece? A meu ver, este é um ponto sensível quando se trata da recepção da arte. O não reconhecimento de sua própria figura perturba de maneira incontestável a relação do público com a obra contemporânea. A criação contemporânea põe em cheque todo paradigma da arte, como a representação, a mímese, a harmonia e, é claro, o belo como categoria de julgamento. O espectador agora é convidado a deixar sua atitude passiva de contemplação para participar ativamente da obra. Ele é encorajado a renunciar à sedução plástica da obra, às ilusões perpetuadas pelas identificações narcísicas. Em outras palavras, às ilusões de conservação da vida. As produções contemporâneas jogam com o frágil equilíbrio entre as forças de vida e de morte. Consequentemente, as estéticas tradicionais não podem responder a este novo tipo de experiência, que é da ordem do mal estar e da estranheza. Mas a estética freudiana sim. O estranho (Unheimliche) se configura assim, na contemporaneidade,  como a melhor tradução da experiência estética.